segunda-feira, 26 de abril de 2010

"Teus seios pontudos perfuraram meu peito"


Entre um segundo e o próximo, uma parte do meu corpo morre. Entre uma hora e outra, ergue-se uma muralha entre o que sou e o fantoche de mim. Quanto mais cresço, à medida que passam os dias e as pessoas, me distancio um pouco mais do plano que tinha de mim. Sou um vaso chinês na Avenida Paulista, um dinossauro num museu de antiguidades. Sou a cópia de cera de mim mesma na casa de cera.
O sofrimento inspira o meu sofrimento. A angústia alimenta o meu estômago. Quero o vazio concreto, quero um mundo só meu, quero ser o que eu sonhar. Quero a plenitude do egoísmo que nunca me permiti conhecer. O que sonhei ontem é descompasso e insegurança hoje. O que fiz é fumaça. Nada importa.Ontem hoje agora amanhã 1993 2011 2020 não existem. Dor confusão traição decepção decapitação compulsão melancolia cólica melancia anorexia. Nada importa. A casa de cera desaparece com o fervor do meu pensamento e o ácido das minhas lágrimas. Meu sangue respinga na tua foto e desenha no teu sorriso a foice que dilacerou a minha alma.
O louco é o mais sensato. Não vale a pena viver nesse mundo. Minhas passagens estão compradas para o mundo da minha loucura, bem distante de todos e fora de mim.
O meu corpo resfriou com a ausência de teu calor de mãe. O meu coração não consegue mais te amar. Minha mente não aceita tua imagem e teu corpo e tua lembrança e tua falta e teu seio cheio de leite-seiva-bruta, secreção infinita das tuas entranhas fincadas na pedra. Eu bebi leite da pedra. Eu estava lá no deserto e abandonei meu espírito na cruz. O mar de sangue me engoliu e nadei com os deuses da morte. Água sal, líquido amniótico placenta veia cordão umbilical vagina luz parada cardíaca.
“Quando a gente nasce, começa a morrer”.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Untitled



Ela não queria crescer. Não se sentia preparada para deixar a casa dos pais. Não se sentia segura para trilhar uma profissão. Não havia tido uma infância tranqüila nem uma adolescência leve. Nunca tivera muitos amigos, contava nos dedos aqueles a quem poderia fazer confissões, embora não o fizesse. Ela não estava preparada para amar, sobretudo.
Aos dezesseis estava completamente sem perspectiva. Olhava o horizonte desfocado pelas lágrimas que encharcavam os olhos sempre que pensava na vida. Aceitara para si o clichê de que ao escrever, consolava-se a alma. Fazia-o quando as lágrimas eram inevitáveis.
Aos dezesseis olhava em volta com olhos cansados do vazio que insistiam em perceber. O corpo também já murchara, assim como a vontade de viver, e parecia ser guiado por pernas desconectadas da cabeça. As mãos e os braços demonstravam os longos e tristes anos de tentativas de mudar a si própria. No espelho agora não importavam mais as rugas e o cabelo grisalho.
Imaginara uma vez se aos oitenta anos acharia motivo para a luta de viver. Valeria a pena esperar?
Ela não estava preparada para amar nem ser amada. As bonecas, onde depositou seu amor quando criança, não reagiam a não ser que fossem guiadas por ela. Um dia cansou de comandar e criar amores.
Dentro de si sabia que se resumia a medos e, devido a essa carapaça, era tão difícil atingir seu coração. Ela mesma jamais soube o caminho.
Uma bomba quebrada deixa passar água impura e, a partir daí, o resto do sistema também quebra. O que seria do planeta se as plantas não estivessem sempre renovando os ares?
Talvez por isso ela sentisse as pernas pesadas e visse o corpo desfigurado no espelho. O coração perdeu o vigor sob tantos medos, ela pensava.
Crescer significava encarar a vida, e a vida a assombrava aos seus dezesseis anos. Ela não queria encarar os medos e enfim ter o coração à mostra. Sentia-se sem forças, como se presenciasse o fim da própria vida e não pudesse caminhar por longos percursos.
Amar, ainda, ela não era capaz.
Em tempos de guerra, castrava-se o amor sem remorsos. Abortou-se de si mesma nessa época.

sábado, 10 de abril de 2010

Blue .




Ela sentiu um aperto no peito, um choro abafado na garganta. Sentia as pernas tremerem, assim como as mãos e o resto do corpo. Não entendeu.
Sim, o dia havia sido cheio como os outros. Vira as mesmas pessoas e pensou nos mesmo problemas do anterior. O que mudara, então?
Ela havia mudado?
Sabia que períodos de mudanças vinham acompanhados de nuvens cinzas e noite orvalhada. Sabia que deveria conter-se caso quisesse permanecer ali, na Terra, junto aos outros.
Mas seu espírito queria mais, sempre mais, e a deixava angustiada, aversa a tudo que não fosse perfeitamente correto.
Daí saia sua inconstância. A imperfeição a atormentava.
Como não sentir uma montanha-vida que gira, anda para trás, rápido, devagar, cabeça para baixo enquanto se está sentada e distraída com o que poderia ter sido, ter feito, ter dito, ter desobedecido...


As pernas cada vez mais cambaleavam e ela sentia que seria ali onde aconteceria.
Depois de percorrer a vida em um segundo, não viu mais o mar à sua frente.

Tudo agora era azul.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Não quero mais saber do lirismo que não é libertação



Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Pética - Manuel Bandeira